A ambição - Sérgio Elísio Peixoto

20/08/2010 23:09

A ambição

O vídeo de Olly Williams e Phil Sanson intitulado The Black Hole, embora de curta duração, é um raro exemplar de comunicação de um sentimento humano de forma concisa, clara e didática. Isto sem a pronúncia de uma palavra. Mais que isto, abre caminho para uma série de reflexões sobre a existência humana, particularmente de sua capacidade de realização e de seu amesquinhamento.

A ação se refere a um funcionário de escritório, provavelmente insone, que realiza atividades mecânicas, como a fotocópia de documentos, varando a madrugada. Em uma dessas noites, durante a realização do seu labor solitário, depara-se com um acontecimento inusitado. Após constatar uma possível falha no funcionamento da máquina e de tentar resolvê-la através da tradicional pancadinha, observa que a mesma voltou a funcionar, imprimindo uma página com uma grande circunferência preta. Um tanto surpreso, mas sem dar maior importância ao fato, coloca a referida página sobre uma superfície ao lado, e, a seguir, põe o copo em que estava bebendo água ou café sobre o papel. Daí surpreende-se mais uma vez ao notar, por conta de uma sensação cinestésica, que o copo não se fixou sobre a superfície. Intrigado, resolve verificar e observa que o copo, de fato, penetrou na circunferência preta. Desconfiado, ergue o papel e enfia temerosamente a própria mão na circunferência. Sua mão some. Logo ele a retira e se dá conta de sua descoberta. Fantástico! Não há como duvidar do valioso instrumento que está em seu poder. Parte, imediatamente, para testá-lo de um modo concreto, utilizando-o para pegar um chocolate de um freezer, onde os produtos alimentares disponíveis só podem ser retirados mediante a introdução de uma moeda. Já comendo o chocolate é acometido de uma nova idéia. Abre-te Sésamo! Em uma sala ao lado existe um cofre. Utiliza, então, a circunferência para abrir a porta da sala e, em seguida, meter a mão dentro do cofre. Não é pequena a emoção de retirar e contemplar o primeiro maço de dinheiro, ao que se segue uma ansiedade incontida de retirar rapidamente os demais. Mesmo tendo retirado uma boa quantidade de dinheiro, quando o movimento, limitado pelo tamanho do braço, se esgota, resolve penetrar com o corpo dentro do próprio cofre. Assim, poderia pegar tudo. Nesse momento, acontece o imprevisto: ao adentrar completamente no cofre fica preso nele. O papel onde estava a circunferência preta, sem ter quem segurá-lo, resvala para o chão, restabelecendo a integridade da parede do cofre.

O que você faria?

É afrontoso formular esta indagação? Não dá para cogitar sobre como procederíamos se nos defrontássemos com uma situação semelhante? Aqui se abrem várias linhas de indagações possíveis. De posse, mesmo que involuntariamente, de um instrumento de poder tão potente, que uso faríamos dele? O destruiríamos imediatamente? Pensaríamos de que modo tal descoberta poderia ser utilizada para fins sociais elevados? E, neste caso, quais seriam estes fins? Acalentaríamos a idéia de podermos utilizá-lo, ainda que moderadamente, em nosso proveito? E de que modo o faríamos? Para que finalidades? O que agregaríamos se escolhêssemos uma dessas opções? Acredito que uma das questões relevantes que o vídeo nos propõe é a do poder. Outra é a da ambição. E a outra a da alienação.

A sociedade do anel

Atualmente, as pessoas falam muito em “chegar lá”, referindo-se a alguma coisa muito desejada. Em conseqüência, estão sempre “correndo atrás”. Observam-se nessas expressões duas percepções: uma de distância e a outra de velocidade. Perseguimos, muitas vezes obstinadamente, algo que nos trará prazer, satisfação e poder. Algo que mudará nossas vidas, nos diferenciará dos outros, nos fará melhores e, como tal, vencedores. Por isso, não devemos medir esforços para alcançar esses objetivos. Precisamos nos adiantar, até porque a concorrência é numerosa. Nosso ritmo dependerá, sobretudo, dos recursos que dispomos. Precisamos ser ágeis, funcionais, velozes. Contudo, se durante essa trajetória conseguirmos alguma coisa que potencialize nossos esforços, poderemos nos tornar felizes mais cedo.

Pensando dessa maneira, é por acaso que as pessoas apostam muito nas loterias, trabalham suas aparências na esperança de encontrar alguém importante que possa favorecê-las, disputem ferozmente recursos familiares, heranças etc.? Se encontrarem o anel número1 irão abrir mão dele, ou estarão convictas de que o utilizarão para os mais nobres propósitos?

O bom, o mau e o feio

A ambição enquanto sentimento humano, certamente originado na história, pode ser considerado tanto de forma negativa quanto de modo saudável. Depende, no entanto, do seu objetivo e de sua intensidade, apesar de não podermos esquecer que está sempre relacionada a algum interesse e à maneira de viabilizá-lo. Tudo que fazemos tem um sentido e uma finalidade. Nas grandes e nas pequenas realizações, quer sejam de caráter individual ou coletivo, é importante que se tenha limites, e estes devem ser definidos pelo atendimento das necessidades individuais e grupais. Por que, então, as pessoas “quanto mais têm, mais querem?”. Se ocupássemos uma posição importante em uma equipe que viesse a descobrir uma vacina contra a AIDS que posição adotaríamos em relação às condições de sua comercialização? Sabemos que esta vacina significaria um avanço muito importante para a humanidade e que as grandes transnacionais farmacêuticas lucrariam enormemente com a sua descoberta. Que tipo de questão levantaríamos? Perguntaríamos quanto iria custar esta vacina? Se estaria disponível para milhões de pessoas que moram em regiões assoladas pela pobreza, cujos governos, muitas vezes esfacelados, não dispõem sequer de recursos para aliviar a fome de suas populações? Se os seus descobridores dessa vacina ganhariam o Prêmio Nobel? Quanto receberiam por conta de direitos autorais? Por que fazemos sempre essas perguntas?

Tempos modernos?

Quantas vezes nos deparamos com situações em as ambições mais desmedidas fazem as pessoas ignorar ou perder aquilo que mais querem? E o que é que um ser humano em qualquer lugar mais do planeta pode ter como algo mais precioso em sua vida? Sem querer ser pretensioso arrisco uma resposta: sua humanidade. Então, por que as pessoas a ignoram ou a perdem? Diria que isto acontece a partir do momento em que suas preocupações existenciais são redirecionadas para a acumulação, principalmente considerando que esta resulta da exclusão dos outros. A apropriação do excedente da produção socialmente criado obriga inevitavelmente aos seus detentores a administrá-lo, protegê-lo, o que implica em orientar suas energias para este fim. Suas vidas estacionam aí, bem como se limita enormemente a existência daqueles que são privados de grande parte do que foi coletivamente produzido, através da utilização de recursos integrantes da natureza. Para estes nasce aí, também, o desejo da posse, entendida, de outra maneira, como condição necessária para realizar suas aspirações, para livrá-las das privações a que são submetidas. Aquilo que lhes foi tomado, materializado em dinheiro e mercadorias, torna-se objeto de desejo, de adoração. Não se reconhecem como produtores desses bens.

O que a vida proporciona de melhor para as pessoas é obtido no âmbito das relações sociais, justamente quando estas são marcadas pela existência de oportunidades para todos, pelo desprendimento, respeito e confiança recíproca. Pelo ânimo em superar as adversidades pelo trabalho e pela cooperação. Jamais pela reprodução da desigualdade e da exploração. Estas isolam, em vez de aproximar; deprimem em vez de elevar; sufocam em vez de oxigenar.

O buraco negro

Acredito que uma das interpretações que o pequeno/grande vídeo nos mostra é justamente a da inutilidade do desejo de acumulação como meio de solução dos problemas individuais e coletivos. Temos, no caso, como protagonista da ação um funcionário de um escritório, solitário, insone, realizando tarefas tediosas, quando de repente depara-se com a oportunidade de virar o jogo, de obter facilmente tudo aquilo que poderia transformar sua insípida existência. Em um átimo conjugam-se a sede de poder, a ambição sem limites e a enorme ilusão de por fim às angústias de sua existência.

O final se assemelha a um enterro, uma morte em vida, um apelo sem resposta. Por que o trabalhador termina preso em um cofre? Este não é um símbolo privilegiado do processo de acumulação, onde o que foi subtraído encontra-se guardado, fortemente protegido das investidas que o desejo do seu conteúdo proporciona? Qual será o destino do trabalhador que ousou roubar o fogo dos deuses? Morrerá sufocado na escuridão, maior do que a de toda sua vida? Ou será salvo ao amanhecer e transferido para um novo cárcere, ou mesmo para um novo cofre? Um dos piores lugares de uma prisão não é a solitária? Quem a merece? A acumulação é a negação da vida, do ser?


Salvador, 04 de junho de 2010.

Sérgio Elísio Peixoto.  

Veja o Video
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