Um oscar entre duas histórias de amizade - ALEXANDRE MACCARI

Um oscar entre duas histórias de amizade

Favoritos a levar estatuetas neste domingo têm análises distintas sobre o que é ser um verdadeiro amigo.

Histórias de amizade, em geral, rendem bons filmes. Tudo é possível para ajudar um amigo em dificuldades. A trajetória de uma verdadeira amizade possibilita argumentos e roteiros bem-desenvolvidos e emocionantes. O interessante é que é nesse filão que dois candidatos ao Oscar construíram suas histórias, mesmo que cada um caminhe por uma análise distinta dos desdobramentos do que é ser um amigo de verdade.

Pois a 83ª cerimônia desse evento, que mobiliza a indústria cinematográfica neste domingo, aponta este ano para dois favoritos: o britânico O Discurso do Rei (The King’s Speech), de Tom Hooper, e o norte-americano A Rede Social (The Social Network), de David Fincher.

O Discurso do Rei está indicado a 12 Oscars, entre os quais melhor filme, diretor, roteiro original e ator (Colin Firth). A trama apresenta uma situação bastante insólita: durante o período de transição do trono inglês durante o entreguerras, George 6º (Firth) assume, contra sua vontade, o trono de rei da Inglaterra por que seu irmão, Edward (Guy Pearce), abdica do posto em 1936. O que aterroriza George 6º é o seu despreparo em discursos e a gagueira vinda de seu nervosismo diante de situações limites.

Assim, por vontade de sua esposa (Helena Bohan Carter), o novo rei recebe o auxílio de um terapeuta da voz pouco convencional, Lionel Logue (Geoffrey Rush), para tentar superar suas dificuldades. Da relação entre os dois, surge, com o tempo, uma amizade. O filme procura aproximar a família real das multidões, tratando a imagem da monarquia, com sua particularidade divina, vista sob o prisma humanizado. Além da aura real há sentimento, responsabilidade e humor. Inclusive, o filme cria a imagem de “bom-moço” de George 6º, em detrimento de seu irmão Edward que larga tudo para se casar com a amante.

A contemporaneidade do filme revela o valor da amizade mesmo entre realeza e plebeus, o que se desdobra uma história de superação, amparada pela confiança do rei no terapeuta e pela lealdade desse para com George 6º (que é o pai da atual rainha britânica Elizabeth 2ª).

Filme exalta a realeza britânica

O roteiro do filme é original, mas se valeu de uma série de fatos da vida de Lionel e da própria história britânica do período, o que dá um selo que atrai muitos espectadores: “baseada em fatos reais”. Ainda assim, o filme faz questão de seguir o propósito de engrandecer a realeza, valorizando a moral inglesa frente aos problemas que os cercam. Esse tipo de situação sempre recorre a uma série de esquecimentos, que, do ponto de vista histórico, são bastante graves, principalmente quando a obra se vende como realidade.

O filme não evidencia as posições imperialistas britânicas na Ásia e na África, assim como não sinaliza a simpatia do príncipe Edward por Hitler, e uma suposta predisposição antissemita de George 6º. Aliás, a influência do primeiro-ministro Winston Churchill é bastante reduzida no filme, em favor do rei. Durante a Segunda Guerra Churchill teve à frente do governo um importante papel estratégico na ação do país e no estado de espírito da população. Evidentemente, não são essas histórias que o filme quer contar e talvez nem espaço houvesse na trama, mas inverter certas situações como se escrevesse a história a solavancos na mente do espectador é uma postura antiética. E para quem analisa filmes, como propõe o historiador Marc Ferro, buscar o não visível no filme é criticamente mais enriquecedor do que se deter na imagem. Dessa forma, a obra cinematográfica funciona como uma contra-análise da sociedade, e não como mera reprodução ou ficção da história.

Trama não fica presa a amarras

A Rede Social, de David Fincher (indicado a 8 estatuetas entre elas: filme, diretor, ator – Jesse Eisenberg – e roteiro adaptado) é um filme mais ousado, que parece não estar preso a certas convenções reais. Com uma edição e uma trilha sonora envolventes, e com atuações do elenco principal bastante convincentes, a obra, que é baseada no interessante livro Bilionários por Acaso 3, de Ben Mezrich, narra a trajetória da disputa pela fundação do site de relacionamentos mais badalado da atualidade: o Facebook. A proximidade entre filme e história é evidente no enfoque ético que a obra propõe, o que vai além da criação do site.

A trama está focada no nerd Mark Zuckerberg (Eisenberg) em 2003. Graduado em Harvard e gênio em programação de computadores, ele senta diante de seu computador para trabalhar em uma nova ideia. Os diálogos são incessantes, e objetivo do filme é entender que os jovens se interessam por informação – em grande quantidade, pouco importa sua qualidade ou profundidade. Essa mesma ideia se aplica aos relacionamentos, sejam amorosos ou simples amizades.

A construção do argumento salienta que Zuckerberg não possui muito senso social. Ele difama sua ex-namorada, quer entrar em um clube badalado na Universidade, valendo-se de vantagens festivas (difíceis para um nerd), aproveita-se do dinheiro investido por outros e acaba por trair a confiança de seu provável único amigo, o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield).

O lado empreendedor de Mark só surge com a entrada de Sean Parker (Justin Timberlake), um dos criadores do Napster, que revolucionou a forma como as pessoas distribuem música, do qual se torna parceiro de negócios e de festas, o que acaba por distanciar ainda mais Eduardo.

O protagonista é um ser que irrita profundamente a maioria dos espectadores (o que pode provocar ojeriza ao filme, inclusive). Trata-se de uma figura paradoxal, que mesmo com pouco trato para laços sociais, torna-se o criador do site de relacionamentos mais usado do mundo.

O diretor não constrói uma biografia dos protagonistas. Ele centra a ação nas disputas intelectuais, jurídicas e emocionais conduzidas pela amizade destacada que existia entre Mark e Eduardo, o primeiro evidenciado em tom arrogante e calculista, e o segundo, inseguro e frágil. Não devemos, no entanto, cair no maniqueísmo típico de obras hollywoodianas, por que Fincher constrói a trama sobre a disputa por dinheiro a partir do fim de uma amizade e das reflexões éticas sobre relações humanas e sociais.

Talvez A Rede Social não possua o impacto que Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, teve para a história do cinema, mas, sem dúvida, a obra de David Fincher é um retrato de uma geração que trata boa parte das relações apenas com um toque de distância.

Os filmes possuem em comum o fato de serem baseados em histórias reais e de refletirem questões importantes nos dias de hoje como a ética, a amizade e os valores sociais e humanos. O Discurso do Rei é uma história de superação, mas também de uma amizade inesperada. A Rede Social é uma história de polêmica, acentuada por uma amizade desfeita, e por discussões sobre moral e negócios.

Não é fácil ter amigos verdadeiros, e esse fator, a amizade, talvez seja decisivo também na hora em que for declarado o prêmio mais aguardado da noite do Oscar.

Professor do curso de História do Centro Universitário Franciscano (Unifra), coordenador do Grupo Cinematógrafo Histórico da Unifra e organizador geral dos Ciclos de Cinema Histórico da Universidade Federal de Santa Maria (Ufsm)

ALEXANDRE MACCARI FERREIRA